OBJETO DA OBRIGAÇÃO – A PRESTAÇÃO IV

, por Sérgio Pasqualli



    
     1.     CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Fundamentalmente, a prestação – entendida como a atividade do devedor direcionada à satisfação do crédito – poderá ser positiva (dar, fazer) ou negativa (não fazer). Por esta mesma razão, as obrigações também são subdivididas em positivas e negativas.
Em regra, o direito obrigacional está calcado na idéia de patrimonialidade, uma vez que os bens e direitos indisponíveis – a exemplo dos direitos da personalidade em geral (honra, imagem, segredo, vida privada, liberdade etc.) – escapam de seu âmbito de atuação normativa. Aliás, é bom que se diga que o dever geral de respeito a esses direitos não traduzem uma prestação patrimonial devida a um credor.
Assim, não se pode reconhecer como válidas as relações obrigacionais que tenham por objeto tais direitos personalíssimos.
Ninguém imagina, por exemplo, que uma parte, por meio de um contrato de cessão, pretenda alienar a sua honra, ficando o devedor pessoalmente vinculado a cumprir esta prestação. Para além da própria impossibilidade jurídica do objeto da obrigação (porque está  fora do comércio jurídico), a ausência de economicidade (patrimonialidade) da honra já prejudicaria o reconhecimento existência e validade jurídica da relação obrigacional (e da própria prestação) travada entre o seu titular e um eventual interessado em sua aquisição.
Fora do campo desses direitos da personalidade, prestação há, entretanto, que não são economicamente mensuráveis, embora constituam, inequivocadamente, objeto de uma obrigação. É o caso, por exemplo, de alguém se obrigar, pro meio de um contrato, a não ligar o seu aparelho de som, para não prejudicar o seu vizinho. A prestação, no caso, não é marcada pela economicidade, e, nem por isso, se nega a existência de uma relação obrigacional. Claro que a prestação, de per si, não tem um contéudo econômico, mas a disciplina, no caso do inadimplemento, deverá tê-lo, seja na tutela específica, seja na eventual apuração das perdas e danos.
Assim,  fixemos a premissa de que, em geral, as prestações devem ser patrimonialmente apreciáveis, embora, em algumas situações, esta característica possa não existir.
PAULO LÔBO, que , com propriedade, invocando o pensamento de PONTES DE MIRANDA, pontifica:
“...Pontes de Miranda entende que se a prestação é lícita, não se pode dizer que não há obrigação se não é suscetível de valorização econômica, como na hipótese de se enterrar o morto segundo o que ele, em vida, estabelecera, ou estipularam os descendentes ou amigos. Do mesmo,  modo, estabelece o art. 398 do Código Civil português que a prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção legal”.

2.     CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA PRESTAÇÃO

A Prestação – objeto direito ou imediato da relação obrigacional – compreende o conjunto de ações, comissivas (positiva) ou omissivas (negativas), empreendidas pelo devedor para a satisfação do crédito. Assim, quando dá ao credor a quantia devida, ou realizada a obra prometida, o devedor esta cumprindo a sua prestação, ou, em outras palavras, adimplindo a obrigação pactuada.
Quando negativa a prestação, desta forma, sua prestação consiste em uma abstenção juridicamente relevante, um não fazer em benefício do credor. Tal caso ocorre no caso de alguém se obrigar, contratualmente, a não construir acima de determinada altura, impedindo a visão panorâmica de seu vizinho. Independente de este contrato estar registrado e constituir um direito real de servidão, o fato é que o sujeito assume uma obrigação (prestação) negativa, de não realizar determinada atividade. Neste caso, o devedor descumpre a prestação ao realizar a atividade que se obrigara a não fazer.
Segundo ANTUNES VARELA:
“tendo principalmente em vista as obrigações com prestação de coisas, os autores costumam distinguir entre o objeto imediato e o objeto mediato da obrigação. O primeiro consiste na atividade devida (na entrega da coisa, na cedência dela, na sua restituição etc.); o segundo, na própria coisa, em si mesma considerada, ou seja, no objeto da prestação”.
Conforme já mencionamos, o objeto indireto ou mediato da obrigação é o próprio bem da vida posto em circulação jurídica. Cuida-se, em outras palavras, da coisa, em si considerada, de interesse do credor. Assim, no caso da obrigação imposta ao mutuário (aquele que tomou um empréstimo), o seu objeto direto ou imediato é a prestação (a sua atividade de dar); ao passo que o objeto indireto ou mediato da obrigação pactuada é o próprio bem da vida que se pretende obter, a utilidade material que se vai transferir (o dinheiro).
A prestação, portanto, para ser considerada válida, deverá ser lícita, possível, determinável.
E são exatamente esses “caracteres”, que imprimem validade à prestação, que iremos analisar nos próximos tópicos.

2.1 Licitude

A licitude da prestação implica o respeito aos limites impostos pelo direito e pela moral. Ninguém defenderá, por exemplo, a validade de uma prestação que imponha ao devedor cometer um crime (matar, alguém, roubar...) ou realizar favores de ordem sexual.
Tais prestações ilícitas, repugnariam a consciência jurídica e o padrão  de moralidade média observado e exigido pela sociedade.
ORLANDO GOMES, citando TRABUCCHI, visualizou diferença entre a prestação juridicamente impossível e a prestação ilícita, nos seguintes termos: a primeira é aquela simplesmente não admitida pela lei; a segunda, por sua vez, além de não ser admitida, constitui ato punível. E exemplifica: a alienação do Fórum romano – prestação juridicamente impossível, e a venda de um pacote de notas falsas – prestação ilícita.

2.2 Possibilidade

A prestação, para que seja considerada viável, deverá ser física e juridicamente possível.
A prestação é considerada fisicamente impossível quando é realizável, segundo as leis da natureza. Imagine a hipótese de o sujeito, por meio de m contrato, obrigar-se a pavimentar o solo da lua. Note-se que a impossibilidade de prestação confunde-se com o próprio objeto do negócio jurídico que deu causa à relação obrigacional (contrato).
A impossibilidade jurídica, por sua vez, consoante já noticiamos, é conceito que, quanto aos seus efeitos práticos, confunde-se com a própria ilicitude da prestação. A prestação juridicamente impossível é vedada pelo ordenamento jurídico, a exemplo da hipótese em que o devedor se obriga a alienar m bem público de uso comum do povo, ou transferir a herança de pessoa viva.
Para considerar inválida (nula) toda obrigação, a prestação deverá ser inteiramente irrealizável, por quem que seja. Se impossibilidade for parcial, o credor poderá (a seu critério) aceitar o cumprimento parcial da obrigação, inclusive por terceiro (se não for personalíssima), a expensas do devedor.
Impossibilidade pode depender do momento e sua ocorrência, poderá ser:
a)    Originária;
b)    Superveniente;
Impossibilidade originária ocorre ao tempo da formação da própria relação jurídica obrigacional. Neste caso, como a nulidade macula a própria causa genética da obrigação (em regra, o negócio jurídico), a obrigação não prosperará, devendo ser invalidade.
Ressalve-se, toda via, a hipótese de o negócio jurídico (fonte da obrigação) estar subordinada a uma condição suspensiva e a impossibilidade de a obrigação nascente ser sanada antes do implemento da referida conditio. Neste caso, a relação obrigacional subsistirá.
Impossibilidade superveniente, por sua vez, é posterior à formação da relação obrigacional. Nesta hipótese, tanto poderá haver o aproveitamento parcial da prestação (em sua parte não inutilizada) como a obrigação poderá ser integralmente extinta.

A questão que ora se propõe é a dos reflexos que podem decorrer, para as partes, da impossibilidade, originária ou superveniente, das prestações colocadas sob alternativa ou opção de escolha (GONÇALVES; 2011).
Dispõe o art. 253 do Código Civil:
“Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ouse tornada inexequível, subsistirá o débito quanto à outra”.
Prevê-se, nesse caso, a hipótese da impossibilidade originária, ou da impossibilidade superveniente, de uma das prestações, por causa não im-putável a nenhuma das partes. Cuida-se de impossibilidade material, decorrente, por exemplo, do fato de não mais se fabricar uma das coisas que o devedor se obrigou a entregar, ou de uma delas ser um imóvel que foi desapropriado. A obrigação, nesse caso, concentra-se automaticamente, independentemente da vontade das partes, na prestação remanescente, deixando de ser complexa para se tornar simples. Se a impossibilidade é jurídica, por ilícito um dos objetos (praticar um crime, p. ex.), toda a obrigação fica contaminada de nulidade, sendo inexigíveis ambas as prestações.
 Se uma delas, desde o momento da celebração da avença, não puder ser cumprida em razão de impossibilidade física, será alternativa apenas na aparência, constituindo, na verdade, uma obrigação simples (GONÇALVES; 2011).
Quando a impossibilidade de uma das prestações é superveniente e inexiste culpa do devedor, dá-se a concentração da dívida na outra, ou nas outras. Assim, por exemplo, se alguém se obriga a entregar um veículo ou um animal, e este último vem a morrer depois de atingido por um raio, concentra-se o débito no veículo. Mesmo que o perecimento decorra de culpa do devedor, competindo a ele a escolha, poderá concentrá-la na prestação remanescente (GONÇALVES; 2011).
Se a impossibilidade for de todas as prestações, sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação”, por falta de objeto, sem ônus para este (CC art. 256). A solução é a mesma já analisada a respeito das obrigações de dar, fazer ou não fazer: a obrigação se extingue, pura e simplesmente. Se houver culpa do devedor, cabendo-lhe a escolha, ficará obrigado “a pagar o valor da que por último se impossibilitou, mais as perdas e danos que o caso determinar” (CC, art. 254). Isto porque, com o perecimento do primeiro objeto, concentrou-se o débito no que por último pereceu (GONÇALVES; 2011).
Mas, se a escolha couber ao credor, pode este exigir o valor de qualquer das prestações (e não somente da que por último pereceu, pois a escolha é sua), além das perdas e danos (GONÇALVES; 2011).
Assevera SILVIO RODRIGUES que a solução da lei é extremamente lógica, pois o credor tinha a legítima expectativa de eleger qualquer das prestações e, se todas pereceram, o mínimo que se lhe pode deferir é o direito de pleitear o valor de qualquer delas, mais a indenização pelo prejuízo experimentado pelo ato censurável do devedor, que sofre apenas as consequências de seu comportamento culposo (GONÇALVES; 2011).
Se somente uma das prestações se tornar impossível por culpa do devedor, cabendo ao credor a escolha, terá este direito de exigir ou a prestação subsistente ou o valor da outra, com perdas e danos (CC art. 255). Neste caso, o credor não é obrigado a ficar com o objeto remanescente, pois a escolha era sua. Pode dizer que pretendia escolher justamente o que pereceu, optando por exigir seu valor, mais as perdas e danos. No exemplo supra, pode alegar, por exemplo, que não tem onde guardar o animal, se este for o remanescente, e exigir o valor do veículo que pereceu, mais perdas e danos (GONÇALVES; 2011).

2.3                        Determinabilidade

Toda prestação, para valer e ser realizável, deverá conter elementos mínimos de identificação e individualização (prestação deve ser lícita, possível, deverá ser determinada, ou, ao menos, determinável).
Determinada é aquela já especificada, certa, individualizada. Ex: “obrigo-me a transferir propriedade de uma casa, situada na rua Oliveiras, s/n, cuja área total é de 100 metros quadrados...”. note-se que, neste caso, houve inteira descrição da prestação que se pretende realizar.
Prestação determinável, por sua vez, é aquela ainda não especificada, mas que contém elementos mínimos de individualização.
É objeto das chamadas obrigações genéricas.
Para o seu cumprimento, no momento de realiza-la, o devedor ou o credor deverá especificar o objeto da obrigação, convertendo-a em prestação certa e determinada.
Assim, quando o sujeito obriga a dar coisa incerta (obrigação genérica) – duas sacas de café, por exemplo, sem especificar a qualidade (tipo A ou B) - no momento de cumprir a obrigação, o devedor ou credor (a depender do contrato ou da própria lei) deverá especificar a prestação,  individualizando-a. Esta operação de certificação da coisa, por meio do qual se especifica a prestação, convertendo a obrigação genérica em determinada, denomina-se “concentração do débito” ou “concentração da prestação devida”.

3.     PRINCIPAIS MODALIDADES DE PRESTAÇÕES

Modalidades mais importantes de prestação, facilmente encontráveis na vida social, e de indiscutível importância para o nosso estudo, a saber;
a)    Prestação de fato (próprio ou de terceiro);
b)    Prestação de coisa (atual e futura);
c)     Prestação instantânea e contínua.
A própria atividade do devedor (prestação de fato próprio), portanto, integra e preenche o conteúdo do crédito exigível, não obstante, em hipótese mais rara, a prestação possa ser de fato de terceiro: “A, dono de um posto de combustíveis, promete que os futuros (e eventuais) adquirentes do posto manterão o direito de exclusividade concedido à companhia fornecedora; B, casado, obriga-se a vender certo prédio a C, prometendo que a sua mulher dará o consentimento necessário à validade da venda”.  Nesses, casos, fala-se em prestação de fato de terceiro, somente possível se a obrigação não for personalíssima (intuitu personae).
Já as prestações de coisa consistem na atividade de dar (transferindo-se a propriedade da coisa), entregar (transferindo-se a posso ou a detenção da coisa) ou restituir (quando o credor recupera a posse ou a detenção da coisa entregue ao devedor).
Assim, no contrato de mútuo, impõe-se ao mutuante dar a quantia emprestada ao mutuário, para que este possa utilizá-la. Da mesma forma, para se constituir o penhor, além do acordo de vontades, impõe-se a entrega da coisa ao credor, ressalvada a hipótese de haver sido pactuada a cláusula constituti. Finalmente, também há prestação de coisa quando o depositário restitui ao depositante a coisa entregue para ser guardada.
No que tange ainda ás obrigações de dar, vale lembrar que, diferentemente do direito francês, em que o contrato, de per si, tem o condão de operar a transferência do domínio (negócio jurídico de efeitos reais), em nosso direito, seguindo a vestuta tradição do sistema romano, exige-se, além do titulo (em regra, o contrato), uma solenidade de transferência (modo).
Esta solenidade, pois, traduz-se em uma atividade de dar: é a tradição, para os bens móveis; e o registro, para os imóveis. Embora nesse último caso não se visualize a entrega material da coisa – pela própria impossibilidade de fazê-lo, já que se trata de bem imóvel (uma fazenda, por exemplo) -. O fato é que somente o registro consubstancia a transferência da propriedade imobiliária. Vale lembrar, ainda, a possibilidade de o objeto da obrigação consistir em prestação de coisa futura. Em regra, a prestação é sempre existente e atual. Todavia, nada impede que o devedor obrigue-se a entregar coisa futura, a exemplo do agricultor que se compromete a vender toda a produção de cana da sua próxima colheita.
A distinção entre as prestações de fato e de coisa, todavia, nem sempre é fácil de ser realizada. Na empreitada mista, por exemplo, em que o empreiteiro obriga-se a empregar seus materiais (prestação de dar) e a realizar a obra (prestação de fazer), as duas formas de atividade do devedor encontram-se interpenetradas, não podendo o intérprete reduzir a hipótese a apenas uma das categorias. Se a empreitada, todavia, for unicamente de lavor, participando o empreiteiro apenas com a sua atividade, estar-se-á diante de uma simples prestação de fato.
Quanto às prestações instantâneas e contínuas.
As primeiras são as que se realizam em um só ato, como a obrigação de pagar determinado valor à vista. As continuas, por sua vez, realizam-se ao longo do tempo, a exemplo da obrigação de não construir acima de determinada altura, ou em prestações periódicas, como no pagamento parcelado ou a prazo.


Bibliografia
GONÇALVES, Carlos Roberto; DIREITO CIVIL BRASILEIRO; Teoria Geral das Obrigações, 8º edição, São Paulo – SP, Saraiva 2011.
GANGLIANO, Pablo Stolze; NOVO CURSO DE DIREITO CIVIL, VOL. II: Obrigações, 9. Ed. Ver. e atual.­- São Paulo: Saraiva. 2008.







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